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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Gastronomia portuguesa

Na palma da mão esquerda, em ademanes de oferenda, a serva trouxe a vasta almofia onde jazia reclinado um autêntico anho, loiro do forno, a escorrer pingos e aromas, inebriantemente pascais.

Aquilino Ribeiro


Comer é um ato cultural. Ao contrário dos outros animais, o Homem elege alimentos para serem consumidos em determinadas festividades (em Portugal come-se bacalhau na consoada, castanhas no S. Martinho, cabrito na Páscoa), cumpre tabus de cariz religioso (os muçulmanos não comem porco), associa gestos ritualizados a determinados alimentos (os cristãos benzem a massa do pão antes de ir ao forno), rejeita alimentos que outros apreciam (o cão não se come na Europa mas é degustado na Ásia). Estabelece hierarquias seja na partilha de alimentos, seja nos lugares de quem os come (à mesa quem se sente onde e ao lado de quem).


Desde que descobrimos o fogo, o hábito de comer os alimentos crus tornou-se longínquo, a sedentarização revelou-nos as possibilidades de conservar os excessos. A utilização do sal, do vinagre e do fumo ainda hoje são usuais.


Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa, gastronomia é o estudo das leis do estômago e provém do Grego (gastro + nomia)  - gastro (do grego: do estômago), nomia (norma) “estudo das leis do estômago”. Quanto à culinária, como escreve Brillat-Savarin: “Quando se analisa a matéria de um ponto de vista geral, podem distinguir-se três espécies de culinária. A primeira trata da preparação dos alimentos e conservou o nome primitivo. A segunda tem por objecto a análise e o exame dos elementos que o compõem e convencionou-se chamar-lhe química. A terceira, a que pode chamar-se culinária de recuperação, é geralmente mais conhecida pelo nome de farmácia”. (Brillat-Savarin, 2010: 170). Mais recentemente, culinária é referida como: “arte de cozinhar; conjunto dos pratos característicos de determinada região” (Id.: Ibid.).


No entanto, hoje, as diferenças entre culinária e gastronomia parecem residir essencialmente entre técnica e gosto. Se lermos José Quitério sobre a mais breve noção do que é a gastronomia, vemos que: “a Gastronomia é a arte de bem comer, que tem como técnica, a boa culinária”(Quitério, 1994: 25). É ainda este autor a referir para a primeira, gastronomia, a importância das matérias-primas, as alfaias da cozinha, os rituais e as abordagens da História, da Geografia e da Sociologia. A segunda, culinária, é vista como uma parte, por ele referida como a mais importante, do todo que a Gastronomia cobre.

Em Portugal as diferenças de receituário, entre aquilo que é tradicional ou apenas o que é pobre, revela ambiguidades permanentes. Se a existência de livros de receitas é muito antiga e a fama da doçaria tem grande relevo histórico, o campo do alimentar ficou sempre com conceptualizações vagas e um recorte indistinto. É preciso esperar pelo século XXI para assistirmos a fenómenos como a definição jurídica da gastronomia como património cultural, a criação de uma comissão da gastronomia  ou a projeção clara dos valores gastronómicos no Plano Nacional do Turismo.

Ponhamos pois uma mesa com toalha de linho, alfaia de barro negro ou vermelho, de ferro, de cortiça, de madeira, de vime, de porcelana Vista Alegre, conforme as matérias oferecidas.

Sirva-se a chanfana em olaria negra, a lembrar os velhos tempos da pastorícia, a alcatra da Ilha Terceira, o requeijão coberto com uma colherada de doce de abóbora, escolha-se o barro vermelho para a chouriça assada com grelos, o xerém com conquilhas, o cabrito estonado com batatinhas, o arroz de polvo, as trutas recheadas com presunto, a posta Mirandesa, os rojões, a sopa de cação, os pezinhos de coentrada, os pastéis de bacalhau, as enguias fritas, as migas, as açordas.

Em panela de ferro e frigideira o caldo verde, a sopa de cascas com botelo, a morcela frita.
De madeira a tábua de queijos que regista o Rabaçal, o Serra, o de Castelo Branco (de pasta amarela e o picante), o de Nisa, o de Azeitão, o do Pico, o de S. Jorge).

Em vime se arruma a broa de Avintes, o pão lêvedo das Furnas, o folar salgado transmontano, a broa minhota.
A cortiça há-de refrescar (ainda mais) o gaspacho.

Que outro berço senão a porcelana para embalar os milagres feitos de açúcar, ovos, pinhões, canela, nozes: o morgado, feito de trouxas de ovos, fios de ovos e ovos moles, a aletria enfeitada com corações de canela, o toucinho do céu, a encharcada, a barriga de freira, a pasta de figo com medronho, as lérias, o pão de ló, as Clarinhas de Fão, o leite creme queimado.

E se houver penitência para a gula, o mesmo não acontece em relação ao pecado de não trazer para a mesa tudo quanto ficou nas cozinhas rurais, nas areias do litoral, nos claustros dos conventos


Maria João Forte
Docente da U.C. de Etnologia e da U.C. de Etnografia e Gastronomia Portuguesa

Brillat-Savarin. (2010). Fisiologia do gosto. Lisboa: Relógio D'Água.
Quitério, J. (2010). Escritores à mesa: (E outros artistas). Lisboa: Assírio & Alvim.
Modesto, M. L. (1982). Cozinha Tradicional Portuguesa (3.ª ed.). Lisboa: Verbo.

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